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‘Ataques a vereadoras são resultado da negligência do Estado com população trans’, diz Natasha Ferreira

‘Ataques a vereadoras são resultado da negligência do Estado com população trans’, diz Natasha Ferreira

Carol Iara (esq.), Érika Hilton (centro) e Samara Sosthenes, co-vereadora no Quilombo Periférico, outro mandato coletivo de São Paulo | Foto: Divulgação

Luís Eduardo Gomes

Na madrugada de quarta-feira, a co-vereadora Carolina Iara, que integra o mandato coletivo da Bancada Feminista (PSOL) em São Paulo, sofreu um atentando quando dois tiros foram disparados contra sua casa. Imagens obtidas por uma câmera de segurança mostram um carro branco, com vidros escuros, parado na frente da residência da co-vereadora por aproximadamente 3 minutos, entre 2h07 e 2h10. Vizinhos confirmam que este foi o horário do som dos disparos ouvidos. Ninguém ficou ferido.

“Sofri atentado político ontem, com tiros disparados na madrugada, em frente de casa. Eu e minha família estamos bem, mas uma co-vereadora travesti foi ameaçada! Mas não vão me calar. Tô bem e agradeço a solidariedade de todes pelo grande apoio. Não mexe comigo, que eu não ando só!”, escreveu Carol Iara em postagem no Twitter.

 

No mesmo dia, a vereadora Érika Hilton (SP), a mulher mais votada para a Câmara Municipal de São Paulo em 2020, registrou um boletim de ocorrência após ser perseguida por um homem que se identificou como “garçom reaça” no parlamento local no dia anterior. O homem que perseguiu Érika alegou ser uma das pessoas que estão sendo processadas pela vereadora. No início de janeiro, Érika protocolou uma ação contra 50 pessoas suspeitas de fazer ameaças transfóbicas e racistas contra ela na internet.

 

Natasha Ferreira, militante dos direitos da população trans e atualmente assessora da deputada estadual Luciana Genro (PSOL), avalia que os ataques a Carol, Érika e a outras mulheres trans eleitas nos últimos anos são consequência da negligência das instituições do Estado.

“Quem deveria prover segurança pública é o Estado. A gente sabe como estamos à margem da sociedade, quando a gente fala isso, não é apenas à margem do mercado de trabalho, fora da escola, as famílias mandando embora. Isso tudo gera uma consequência de sermos corpos objetos, corpos que podem não existir, basta que as pessoas cheguem e matem, espanquem, esfaqueiem, enfim. O que acontece agora com os quadros públicos do PSOL e de outros partidos são as ameaças, a tentativa de intimidação, mas isso só acontece porque o Estado não zela pela vida de pessoas transexuais”, diz.

Para Natasha, essa violência é reflexo de uma sociedade que não aceita vivências que rompam com a lógica binária defendida pelos estratos conservadores. “Por que os corpos trans são tão alvo da sociedade? Porque isso é um discurso de ódio, que hoje está impregnado na presidência da República, por exemplo”, diz. “Nós fomos criados em uma sociedade completamente binária, de homens e mulheres. O corpo de uma travesti rompe muito a lógica social, mesmo sendo uma mulher branca como eu, por exemplo. Eu abri mão de todos os privilégios masculinos que eu teria como homem branco para transicionar e me tornar a mulher que, de fato, eu sou. Quando eu abro mão disso, estou rompendo com uma lógica do sistema, porque ele foi montado exatamente para que as travestis estejam na esquina se prostituindo, e não buscando outros espaços”, complementa.

Natasha Ferreira. Foto: Reprodução Facebook

Ela pontua que o trabalho das parlamentares, assim como de Duda Salabert (PDT) — vereadora mais votada em Belo Horizonte e também vítima de ataques — e de outras eleitas, é uma vitrine, por isso também acabam se tornando alvo desse tipo de ataque. “A partir do momento em que a gente ascende politicamente, esses grupos começam a endurecer com a gente. A Érika Hilton foi a mais votada de São Paulo. Eles sabem que, se não pararem a Érika, daqui a pouco o Brasil começa a ter uma referência de mulher preta e travesti. Isso não é interessante para nenhum setor conservador”, diz

Natasha diz que, quando foi candidata à deputada estadual, em 2018, sofreu três ameaças de morte por perfis anônimos na internet. “Por quê? Porque as pessoas pensam: ‘Pô, as travestis estão querendo disputar eleições, aqui não é o espaço delas. O espaço delas é na esquina, quando a gente quer fazer programa, na noite e no sigilo, mas na política não dá’. E ainda assim a política é hoje, nessa democracia maluca que a gente tem aqui, a ferramenta que temos para nos defender e defender os nossos e as nossas”, diz.

Pelo nono ano consecutivo, o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans. Nesta sexta-feira (29), a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulgou o Doissiê dos Assassinatos e da violência contra pessoas trans em 2020, indicando que foram registrados ao menos 175 assassinatos de pessoas trans, travestis e mulheres transexuais, um aumento de 41% em relação a 2019, quando o dossiê da entidade contabilizou 124 assassinatos.

“Quem protege essas mulheres eleitas?”

Após a tentativa de atentado contra Carol Iara, o Instituto Marielle Franco lançou uma campanha pela proteção da co-vereadora, mas que também tem o objetivo de pressionar os órgãos públicos a oferecer proteção para mulheres negras, trans e travestis que estão assumindo seus primeiros mandatos pelo País em 2020 e têm sido alvo de ameaças.

Em conversa com o Sul21, Anielle Franco, irmã de Marielle, relembra que, logo após as eleições, fez um tuite com o questionamento: “Quem protege essas mulheres eleitas?” Diante dos ataques a Carol e Érika, ela retomou o questionamento no Twitter nesta semana.

Anielle Franco. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Nós fechamos o ano de 2020 com uma campanha pela primeira vereadora negra de Joinville (SC), Ana Lúcia Martins, que estava sendo ameaçada e muito assustada com isso tudo. Depois disso, ainda rolaram os episódios das parlamentares que receberam e-mail de ameaças assustadores e a gente tinha decidido, aqui no Instituto, que focaríamos em ações por mudanças estruturais, por um sistema político mais seguro. Mas a gente abriu 2021 com esses ataques à Carol e à Érika, justo na semana da visibilidade trans. Fazem isso achando que vão calar as mulheres negras, trans e travestis, mas não tem volta. Nós vamos ocupar todos esses espaço na sociedade e vamos mostrar que a gente tá aí junto, que somos milhares de pessoas cobrando políticas públicas e de proteção que garantam o nosso direito de existir e participar em todas as decisões. A gente não vai mais retroceder em nada nesse País, já basta retroceder com esse presidente”, afirmou.

Natasha defende que uma política pública implementada no Rio Grande do Sul poderia ajudar no enfrentamento à violência contra a população trans: a criação de delegacias especializadas no atendimento de vulneráveis para atender os crimes de intolerância religiosa, racismo e LGBTfobia. “A forma de acolhimento com a delegada Andréa (Mattos, titular da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância de Porto Alegre) é fundamental, porque ela acolhe a identidade de gênero e orientação sexual. Isso é fundamental para que as pessoas se sintam minimamente à vontade para registrar um BO”, diz.

Outra política que ela defende como essencial é a criação de casas de acolhimento e centros de referência para atender esta população. “A gente não tem como pensar coisas muito revolucionárias quando a gente tem o Bolsonaro, o Eduardo Leite e o Melo, aqui em Porto Alegre. Um centro de referência é algo que é menor. Ele demanda emenda, mas também demanda espaço público, cedência de estrutura. E a casa de acolhimento é fundamental, não só para as pessoas trans, mas também para mulheres vítimas de violência. Quando você pega a população LGBT, uma casa de acolhimento faz muita falta, porque tem muita gente vindo do interior para Porto Alegre e tá começando a dormir na rua. Uma casa de acolhimento seria fundamental para acolher essas pessoas, encaminhar para os serviços, que são transversais aqui no município, para que elas não sejam mais uma a dormir na rua”. 


Créditos Sul21, publicado originalmente em https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2021/01/ataques-a-vereadoras-sao-resultado-da-negligencia-do-estado-com-populacao-trans-diz-natasha-ferreira/

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